quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Talismã - um texto antigo de 2004


Sobre a cama desfeita deixou o antigo pingente, onde um dia se encontravam quatro pequenas luas. Hoje restava apenas uma, a negra, a nova que incoerentemente não representava o novo, o reinício e sim o fim, talvez por isso negra...

...julho corria tranqüilo e frio, o silêncio da noite era quebrado apenas quando as ondas arrebentavam ultrapassando o quebra-mar, fato comum nas noites de lua plena, e ao atingirem seu clímax com um enorme estrondo costumava causar medo. Apreciar aquele momento do alto do penhasco era o melhor se que podia fazer antes de romper definitivamente com o passado.

Ao longo daqueles dez anos pouco havia mudado naquele cenário, as luzes distantes da cidade a sudeste e a esquerda a pequena vila de pescadores, hoje quase extinta.

Minha alma voltou aos dias em que a vida não era nada mais senão riso e brincadeira, férias eternas, entre a pequena aldeia e o imponente chalé do alto da Escarpa Carmim, como era chamada a falésia que se erguia majestosa há poucos quilômetros da vila.

Agora a visão da casa não passava de um fantasma que tentava desesperadamente se manter erguido, almejando inutilmente escapar do tombo fatal e ali também morreriam todas as recordações que agora a faziam sofrer. Tudo começou com o pequeno talismã e tudo terminaria com ele.

Por 10 anos viveram tudo que poderia ser vivido e fizeram tudo o que poderia ser feito para eternizarem a felicidade, onde o destino era traçado, onde as paixões eram vividas, onde não se esperava por nada nem por ninguém. A vida era assim sem cobranças, sem traumas, sem medos, sem pecados.

A vida era vivida e vívida, como costumavam dizer. A única regra: a verdade fosse ela qual fosse.

Daí o talismã, um pingente, quatro luas, quatro fases, quatro vidas uma para cada lua, unidas pelo amor e pela verdade.

A primeira lua se foi quando Ana se apaixonou, foi-se a lua cheia. Assim, Raquel que um dia foi crescente trocou com Maria, pois queria ser minguante para morrer, mas longe dali sobreviveu.

Maria me jurou amor eterno, fosse a sua lua qual fosse, mas ao receber a lua crescente desejou que lhe crescesse o ventre como a lua que tinha no peito, para isso outro amor e o ventre livre para conceber.

Assim fiquei nova e só, revivendo todas as fases que agora só a mim pertenciam e que minhas lembranças faziam sempre se renovar. Há pouco soube que minha Maria, meu bem querer, e todo o seu brilho crescente também se foi. De seu ventre outra Maria brilhou, mas o destino impiedoso, em troca, a levou. Assim de nova me fiz lilith.

Nada me resta a não ser abandonar esta vida, entregando-me a noite fria, a fase negra - onde nada vive, onde nada temerei, onde a saudade não existirá e o amor perecerá para sempre.

Na cama o último sonho do amor, o último fantasma, a última gota de perfume, a última lágrima de saudade, a última esperança do retorno.

Em algumas semanas sentiriam minha falta. Na casa encontrariam uma cama desfeita uma foto, em preto e branco, rasgada e um pingente onde uma lua nova jazia sozinha. Talvez procurem por mim, talvez não, afinal eu sempre dizia: - qualquer lua dessas partirei também...

... sobre a cama desfeita deixou o antigo pingente, onde um dia se encontravam quatro pequenas luas, quatro vidas, quatro amores. Restou apenas uma - a negra.
Na pequena vila de pescadores corre a lenda de que aquela que não aceitou a verdade e se matou por amor vaga errante através das falésias nas noites de lua nova a espera de sua Maria.

2004 Elaine Brunialti

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