sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Cotidiano (ou Mariana e Pedro)

Mariana vivia sua mocidade tranqüila como toda garota deveria viver.
Boa família, de boas posses, bons colégios,
bons amigos, uma vida confortável, feliz.
Um dia Mariana conheceu Pedro.
Pedro também vivia sua mocidade tranqüila, boa família,
de boas posses, tudo igual em peso e medida
a se comparar com a vida de Mariana.
Então logo começaram a flertar, sair, namorar, noivar e passo seguinte casar.
E assim foi.
Mariana se formou no normal, como era de costume das moças de boa família e foi dar aulas.
Fazer carreira como sua mãe.
Pedro se formou em economia, prestou concurso e foi trabalhar no banco do Brasil.
Fazer carreira, como seu pai.
Assim, logo puderam casar. Dos pais ganharam a casa, de frente ampla e com garagem, na Vila Mariana.
Era confortável, três quartos e dois banheiros, sala de jantar e de visita,
copa cozinha azulejadas de branco e nos fundos a edícula
onde ficava o quarto da empregada e a lavanderia.
Recém-casados já possuíam geladeira e TV. Coisa rara em jovens casais naquele tempo.
Mas a sorte bafejava benesses para Mariana e Pedro.
Viviam felizes e vieram os filhos – quatro. Dois meninos e duas meninas.
Mariana então deixou a escola seus alunos e passou a viver para sua família,
como sua mãe, sua avó e sua bisavó haviam feito.
Pedro fez carreira no banco, e vivia para prover sua família,
como seu pai, seu avô e seu bisavô haviam feito.
E assim foram passando aniversários, páscoas, natais, carnavais, anos novos, sempre velhos.
E a vida seguia feliz.
As crianças cresciam, Mariana emudecia, Pedro não mais sorria, mas eram uma família feliz.
Pois tinham agora dois carros, TV colorida, uma casa maior e os filhos mais velhos imagine estudavam no Mackenzie.
E tudo era exatamente como deveria ser.
Uma família feliz como haviam sido felizes seus pais, avós e bisavós.
As crianças se casaram e agora havia netos.
Venderam a casa a foram para um lindo apartamento em frente ao Ibirapuera vista maravilhosa.
Ali viviam Mariana e Pedro, agora mal se falavam, mal se tocavam, mas eram um casal feliz.
Um dia Mariana levantou, passou as mãos pelos cabelos grisalhos e sem vida, observou as rugas em seus olhos, seus lábios pendiam caídos em direção ao chão numa expressão seca, como sua alma.
Mariana saiu.
E ao contrario de sua mãe, avó e bisavó, ela não mais voltou.


segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Madrugada de Segunda-feira

um poema de Hilda Hilst:

Vem dos vales a voz. Do poço.
Dos penhascos. Vem funda e fria
Amolecida e terna, anêmonas que vi:
Corfu. No mar Egeu. Em Creta.
Vem revestida às vezes de aspereza
Vem com brilhos de dor e madrepérola
Mas ressoa cruel e abjeta
Se me proponho ouvir. Vem do Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem do Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.
E sibilante e lisa
Se faz paixão, serpente, e nos habita.

um poema de Elaine Brunialti
VIDA
Sansara,
A roda da minha vida.
Vivendo, morrendo, vivendo.
Eternamente.
Presa a armadilha ilusória.
Pensando-me ser vivente.
Morrendo, entretanto, sempre.
Ilusão da vida diária.
Onde o suicídio é contínuo.
Vivo, sem saber-me morto.
Morto, sem saber-me vivo.
Mas sabidamente preso,
a minha sansara.
Que por livre e espontânea culpa,
Prendi-me.
BOA SEMANA A TODOS - SEJAMOS FELIZES

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Talismã - um texto antigo de 2004


Sobre a cama desfeita deixou o antigo pingente, onde um dia se encontravam quatro pequenas luas. Hoje restava apenas uma, a negra, a nova que incoerentemente não representava o novo, o reinício e sim o fim, talvez por isso negra...

...julho corria tranqüilo e frio, o silêncio da noite era quebrado apenas quando as ondas arrebentavam ultrapassando o quebra-mar, fato comum nas noites de lua plena, e ao atingirem seu clímax com um enorme estrondo costumava causar medo. Apreciar aquele momento do alto do penhasco era o melhor se que podia fazer antes de romper definitivamente com o passado.

Ao longo daqueles dez anos pouco havia mudado naquele cenário, as luzes distantes da cidade a sudeste e a esquerda a pequena vila de pescadores, hoje quase extinta.

Minha alma voltou aos dias em que a vida não era nada mais senão riso e brincadeira, férias eternas, entre a pequena aldeia e o imponente chalé do alto da Escarpa Carmim, como era chamada a falésia que se erguia majestosa há poucos quilômetros da vila.

Agora a visão da casa não passava de um fantasma que tentava desesperadamente se manter erguido, almejando inutilmente escapar do tombo fatal e ali também morreriam todas as recordações que agora a faziam sofrer. Tudo começou com o pequeno talismã e tudo terminaria com ele.

Por 10 anos viveram tudo que poderia ser vivido e fizeram tudo o que poderia ser feito para eternizarem a felicidade, onde o destino era traçado, onde as paixões eram vividas, onde não se esperava por nada nem por ninguém. A vida era assim sem cobranças, sem traumas, sem medos, sem pecados.

A vida era vivida e vívida, como costumavam dizer. A única regra: a verdade fosse ela qual fosse.

Daí o talismã, um pingente, quatro luas, quatro fases, quatro vidas uma para cada lua, unidas pelo amor e pela verdade.

A primeira lua se foi quando Ana se apaixonou, foi-se a lua cheia. Assim, Raquel que um dia foi crescente trocou com Maria, pois queria ser minguante para morrer, mas longe dali sobreviveu.

Maria me jurou amor eterno, fosse a sua lua qual fosse, mas ao receber a lua crescente desejou que lhe crescesse o ventre como a lua que tinha no peito, para isso outro amor e o ventre livre para conceber.

Assim fiquei nova e só, revivendo todas as fases que agora só a mim pertenciam e que minhas lembranças faziam sempre se renovar. Há pouco soube que minha Maria, meu bem querer, e todo o seu brilho crescente também se foi. De seu ventre outra Maria brilhou, mas o destino impiedoso, em troca, a levou. Assim de nova me fiz lilith.

Nada me resta a não ser abandonar esta vida, entregando-me a noite fria, a fase negra - onde nada vive, onde nada temerei, onde a saudade não existirá e o amor perecerá para sempre.

Na cama o último sonho do amor, o último fantasma, a última gota de perfume, a última lágrima de saudade, a última esperança do retorno.

Em algumas semanas sentiriam minha falta. Na casa encontrariam uma cama desfeita uma foto, em preto e branco, rasgada e um pingente onde uma lua nova jazia sozinha. Talvez procurem por mim, talvez não, afinal eu sempre dizia: - qualquer lua dessas partirei também...

... sobre a cama desfeita deixou o antigo pingente, onde um dia se encontravam quatro pequenas luas, quatro vidas, quatro amores. Restou apenas uma - a negra.
Na pequena vila de pescadores corre a lenda de que aquela que não aceitou a verdade e se matou por amor vaga errante através das falésias nas noites de lua nova a espera de sua Maria.

2004 Elaine Brunialti